Julho - 2016 [dialogos_lusofonos] Um fundanense na Inquisição Gaspar Mendes Furtado – Tocador de cítara (I)
Opinião (JF Diário) 4 Jul 2016, 17:16h
Um fundanense na Inquisição Gaspar Mendes Furtado – Tocador de cítara (I)
A leitura de documentação inquisitorial, na primeira metade do século XVIII, conta histórias de um estranho sofrimento, construídas com mártires de uma fé vivida na clandestinidade. Cristãos-novos, se uns se enterravam no medo, outros, rebeldes afrontavam e inquietavam ortodoxias.
Gaspar Mendes Furtado (GMF) desafiou mais do que podia; nascido e baptizado no Fundão, na Igreja de São Martinho, foram padrinhos os tios, António Navarro e Isabel Henriques. O pai, João Navarro, viera de Sevilha para Lisboa. Buscava um porto seguro. Não quis a sorte que assim fosse e a fuga clandestina para a Beira Interior afigurou-se modo de sobrevivência. Será detido na Guarda, que eram muitos os olhos e ouvidos do Santo Ofício disseminados pelo reino. O filho, GMF, conhecerá igual destino. Era fabricante de panos; residira em Valverde, bispado de Cória, em Salamanca, Guarda, Covilhã, Fundão, Belmonte... Casa com Clara Henriques, da Guarda – Inquisição de Lisboa, Pº 1877 -. São ambos de famílias cristãs-novas, suspeitas de heresia. Prendem-no em Belmonte, a 25 de julho de 1725. No dia seguinte, hão de levar a mulher e entregá-la ao Alcaide dos cárceres da Inquisição.
No processo de GMF – Inquisição de Lisboa, Pº 9636 - com centenas de páginas, leem-se registos de denúncias de gente do Fundão, Teixoso, Azevo, Pinhel, Covilhã, Tortosendo, Freixedas, Vilar Torpim…
Na Mesa da Inquisição, em várias sessões, vai confessando “culpas”. Assegura que não tinha seus erros por pecado, e que acreditara na Lei de Moisés até ser detido. Nega as presunções/informações que constam no Santo Ofício. Cala demais, hão de castigá-lo exemplarmente. Os silêncios de GMF resultaram na sentença aplicada aos que ocultavam nomes de judaizantes e cerimónias religiosas que, em conjunto, haviam celebrado. Não conseguiu deduzir as denúncias e denunciantes? Tinha esquecido o que outros testemunharam? Altivo, recusou a defesa do Procurador. Mantinha o que expusera.
Razões de sobra para que o Promotor do Santo Ofício o qualifique como “ficto, simulado, falso, impenitente”. Condena-o pelo crime de heresia a “excomunhão maior, confiscação de bens para o Fisco e Câmara Real, e relaxado à Justiça secular”. Era a pena maior, a fogueira! Como libertar-se? A 14 de Agosto de 1726, decide falar. Estava perturbado, explica; por isso optara pelo silêncio. Confessa. Os Inquisidores concedem crédito ordinário ao depoimento e dão o processo por concluído. Registam: “disse de si bastantemente e de sua mulher, irmãos, cunhados e outras pessoas suas conjuntas, não conjuntas com algumas das quais não estava indiciado”… Mas, com outros olhos, mais severos, detetaram que, afinal, encobrira o nome de um cunhado… e de outros. Propõem, por isso: Pais do Amaral que “fosse posto a tormento, fosse atado”; Fonseca Sotomaior “que tivesse trato corrido”; Philippe Maciel defende que “fosse atado com a segunda correia”; os deputados Silva de Araújo e Fernandes de Almeida preferem que “tivesse um trato corrido e fosse levantado até ao lugar do Libelo”; o deputado D. Francisco de Almeida optaria por “o mesmo trato e que fosse levantado até à roldana e a todos que podendo-o sofrer a juízo do médico ou cirurgião, e arbítrio dos inquisidores. Com o que resultar, se torne o seu processo a ver em Mesa”. Malvados uns mais do que outros, ou mudavam de papéis?
À tortura não escapa! A 19 de Agosto, estava na Sala do Tormento. Obstinado, GMF garante que não tinha mais que dizer. Chamaram o médico e o cirurgião, os ministros da Execução do suplício. Fala ou não fala? Assomaram à memória cerimónias em que participara, pessoas, mal entendidos, invejas… A vida posta a nu.
Ainda assim, o testemunho não satisfaz. Avançam com a “segunda correia”. Mandam “despojar o Réu dos vestidos que podiam impedir à execução do dito termo”. Despem GMF, uma forma de humilhação! Que é da compaixão? Da dignidade?
No dia seguinte, na Mesa, lembram-lhe a última confissão, na Casa do Tormento “em a qual gritava por Jesus e Nossa Senhora”… Dizem-lhe que “porque agora que está sem medo de violência alguma pode dizer a verdade”. GMF confirma os registos. Merecia crédito, concluem. Desta vez, o Réu não assinou. Os tratos de potro e de polé provocavam sempre aleijões graves.
A 27 de Agosto, a mulher, Clara Henriques, conhecia igualmente a “Casa do Tormento”. Instigam-na à confissão e medem o medo, à vista dos instrumentos de tortura. (…) Hão de desfilar ambos no Auto da Fé de 13 de Outubro de 1726, em Lisboa. A sentença é a mesma: excomunhão maior, cárcere e hábito penitencial perpétuo, penas e penitências espirituais; sofreram a confiscação de todos os bens para o Fisco e Câmara Real. Livraram-se da fogueira. Os filhos estavam na Guarda, em casa de familiares. Que aconteceu depois?
Maria Antonieta Garcia
Via: www.jornaldofundao.pt
Enviado por Margarida Castro