segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Nas rotas dos marranos de Trás-os-Montes





Por António Júlio Andrade 







Com a expulsão dos judeus de Espanha, em 1492, ter-se-ão verificado profundas alterações na paisagem humana de Trás-os-Montes onde entraram e ficaram a viver muitas dezenas de milhares desses refugiados.


E, acrescentando estes aos que já antes habitavam nas muitas judiarias que estão documentadas, concluir-se-á que uma grande percentagem da população trasmontana no século de 500 era constituída por gente da nação hebreia.








Obrigados a abraçar a religião cristã, eles continuaram, na generalidade, fiéis à crença de seus antepassados, praticando a religião judaica no interior de suas casas, se bem que, pelo exterior, eles procurassem dar provas de cristãos, frequentando as igrejas e mostrando-se cumpridores das regras que lhe impunham. Este comportamento dúplice era, por vezes, perceptível e escandaloso para a população cristã.


Com o argumento de fazer “reduzir” a gente marrana à fé cristã e extinguir definitivamente o judaísmo do reino católico de Portugal, foi criado o tribunal da Inquisição.
Naturalmente que as tensões entre os dois elementos da sociedade trasmontana não resultava apenas da questão religiosa. Havia também muitos problemas derivados da economia, com os cristãos a queixarem-se dos exploradores e agiotas judeus. E havia também lutas políticas muito intensas, se bem que, geralmente, surdas e recalcadas e, por isso mesmo, mais duradouras e difíceis de resolver.


E se a Inquisição foi apresentada (e continua a ser considerada) como um tribunal da fé e um instrumento da igreja católica, a verdade é que ela foi também uma espécie de partido político (talvez até o partido único de suporte ao poder) e tribunal constitucional, para usarmos a linguagem dos nossos dias. Ao menos é isso o que para nós resulta, da leitura de largas centenas de processos que já fizemos.


Com efeito, para se entrar numa universidade, para se conseguir um emprego público, para se ser padre, para desempenhar um cargo de vereador ou para se obter um título de nobreza era indispensável apresentar documento passado pela Inquisição atestando que não tinha o requerente qualquer gota de sangue judeu, até à quarta ou quinta geração.


Por outro lado, para se fazer carreira política, o caminho normal era a militância no partido da Inquisição. E essa militância revestia as mais diversas formas. Podia ser a simples criada de servir que, para se vingar dos patrões, ia denunciá-los ao abade, por gestos simples mas de cariz judaico. Podia ser um jovem bacharel que queria singrar como advogado no tribunal da comarca e anotava os que não trabalhavam ao sábado indo denunciá-los ao vigário geral como judaizantes. Podia ser o clérigo que para alcançar o lugar de cura de uma igreja, andava sempre a espiar os marranos da terra para ir contar ao comissário regional da Inquisição. Podia ser o homem da nobreza que tudo fazia para obter o vistoso colar de Familiar da Inquisição. Podia mesmo ser um marrano que, por qualquer vil pretexto ou para singrar na vida, se metia a denunciar os da sua nação.


Repare-se também que as autoridades civis da região, mesmo as de mais elevada categoria, como eram os corregedores, tinham obrigação (ou devemos dizer que era uma regalia!) de cumprir as ordens emanadas da Inquisição. E se as medalhas de Familiares eram muito disputadas pela gente da nobreza e da clerisia, mais cobiçados seriam certamente os cargos de Comissários da Inquisição.


Por tudo isso, logo que a Inquisição fazia as primeiras prisões em uma terra, o medo apoderava-se de toda a gente da estirpe hebreia. E muitos fugiam para não serem presos. E os que eram presos e regressavam à terra, nunca mais se livravam do estigma de judeu e isso, por vezes, custava mais a suportar do que os horrores da cadeia. Por isso tomavam
igualmente os caminhos da fuga para o litoral e o sul do País e, mais frequentemente, para o estrangeiro.


Estes movimentos de fuga atingiram proporções alarmantes, com resultados catastróficos em muitas terras do Nordeste Trasmontano. Em Vila Flor, por exemplo, em apenas duas décadas, a quarta parte dos moradores deixou terra, reduzindo-se de 400 para  300 o número de seus agregados familiares (fogos). Tempos depois, em 1721, as próprias autoridades camarárias, escreviam para a Academia Real de História:
– Foi povoação de 500 vizinhos e hoje se acha tão diminuta que tem somente 259, a respeito dos inumeráveis cristãos-novos que dela se expulsaram, não sem notável detrimento dos mais moradores.
Bragança e Torre de Moncorvo foram outras terras igualmente martirizadas pela Inquisição. Tal como Chacim e Mogadouro que, no ano de 1652, por exemplo, contava umas 6 dezenas de seus marranos metidos nos calabouços da inquisição. Sobre esta terra, foram os próprios inquisidores de Coimbra que fizeram escrever o seguinte testemunho:

– É terra que arde em judaísmo, onde a Inquisição tem presas mais de 60 pessoas e outras tantas ou mais andam fugidas para não serem presas.


Quintela de Lampaças, freguesia do termo de Bragança, era outra terra onde a população marrana se apresentava excepcionalmente numerosa e liderante. E em Setembro de 1634 um grupo de 23 homens e mulheres resolveu celebrar a festa do dia grande (Kipur), em conjunto e com menos recato, em casa de um deles. Na sequência desta celebração e da correspondente campanha persecutória da Inquisição que ordenou a prisão de 19 deles, a grande maioria da população marrana, mais de 60 pessoas adultas, abandonou a terra. 


Estes acontecimentos de Quintela de Lampaças são contados na primeira parte deste livro.
Na segunda parte, vamos para Castela, ao encontro de uma família de marranos fugidos de Trás-os-Montes, mais concretamente da vila de Izeda, e que ali construíram um verdadeiro império económico, cotando-se entre os maiores banqueiros de Espanha e da Europa. É um caso exemplar de gente Trasmontana a quem, na sua terra, não são dadas (nem tão pouco permitidas) condições de vida e, por isso, se vê obrigada a ir dar vida a chãos estranhos.
Em tempos de paz e de normalidade política entre Portugal e Castela, a linha de fronteira em Trás-os-Montes mais parecia um traço de união do que de separação entre os dois reinos. As feiras espanholas de Medina del Campo e Benavente eram da maior importância para os comerciantes Trasmontanos. Tal como as feiras de Torre de Moncorvo ou do Azinhoso se enchiam de mercadores Castelhanos. E a união transfronteiriça não era visível apenas ao nível da economia, do comércio e das feiras. Também a outros níveis, com destaque para a instrução e cultura. Assim se explica que as universidades de Salamanca ou de Alcalá fossem tanto ou mais procuradas pelos estudantes Trasmontanos que a de Coimbra. Assim se compreende que homens de letras de Trás-os-Montes tenham conseguido maior projecção e prestígio em Castela do que na sua própria terra, como foi o caso do Moncorvense Francisco Botelho de Morais. Porém, tempos houve em que a guerra e a discórdia política entre os dois reinos transformaram a fronteira em muro difícil de transpor.



Difícil, mas não impossível, que sempre o contrabando existiu e sempre houve gente a arriscar a própria vida dando o salto na fronteira. Sobre o assunto, versa a terceira e a mais extensa parte deste livro. Aconteceu pelos anos de 1650, no período mais aceso da Guerra da Restauração. 


Em Portugal, a Inquisição parecia aliada dos espanhóis contra o novo rei D. João IV, o primeiro da dinastia de Bragança. E lançou uma perseguição extremamente feroz contra os marranos de Trás-os-Montes cujos cabedais e apoio logístico bem útil seria ao governo português, no esforço de guerra. Aliás, não era António Rodrigues Mogadouro o grande financiador dos exércitos lusitanos em Trás-os-Montes? 


E não era o seu cunhado, António Fernandes Vila Real, o ministro de D. João IV com maior peso nas relações internacionais? Não foi por isso que a Inquisição o lançou na fogueira do auto de fé com que celebrou o 12.º aniversário do golpe do 1.º de Dezembro? Pois, foi nesses anos de 1650 e certamente por isso mesmo, que a Inquisição lançou uma das maiores campanhas contra os marranos de Trás-os-Montes, muito especialmente na região do Leste Trasmontano. Com a ameaça da Inquisição e a fronteira fortemente vigiada, a população marrana sentia-se, certamente, mais encurralada, com as rotas de fuga para Castela bem vigiadas pelos esbirros da Inquisição, que os havia em toda a parte. E foi então, em resposta a esta situação que se formou em Vimioso uma rede de passadores de marranos que acabou por ser desmantelada pela Inquisição e que neste livro se apresenta. Outras terá havido, porventura, ao longo da linha de fronteira e cujos membros não foram descobertos, pelo que não será possível falar delas. E outras mais terão sido descobertas e desmanteladas pela Inquisição? A resposta está nos milhares de processos guardados no Instituto do Arquivo Nacional da Torre do Tombo que ainda não foram lidos e divulgados.




Via: www.coisasjudaicas.com
(Junho de 2014)




Sem comentários:

Enviar um comentário