sábado, 8 de março de 2014

Parte II - Escola de Tradutores de Toledo




“Cantigas de Santa Maria”

Cristãos, mouros e judeus nas Cantigas de Afonso X, o Sábio



Afonso X com a sua corte musical, ilustração do códice CSM


     Em artigo anterior dedicado à Escola de Tradutores de Toledo, abordámos as Cantigas de Santa Maria, essa extraordinária compilação poético-musical em louvor da Virgem Maria elaborada sob a orientação de Afonso X, o Sábio (1221-1284). Nas Cantigas a Virgem é piedosa, intercedendo a favor dos aflitos por meio de soluções milagrosas, perfeitamente credíveis para as mentalidades do século XIII. Por exemplo, o caso do pintor de uma igreja que preparava uma bela imagem da Virgem, e outra muito feia do diabo. Este, ofendido por ser representado de forma pouco elogiosa, sacode os andaimes onde o pintor trabalha, para o fazer cair. Milagrosamente, o pincel com que pintava a Virgem e o Menino agarra-se à imagem destes, e o pintor, agarrado pelo pincel, não cai. 



Cantiga 74 - Como Santa Maria guareceu o pintor que o demo quisera 
matar porque o pintava feo.


     Outro milagre envolvendo o demónio é o da Cantiga 47. Nesta Cantiga, com melodia tratada em modo de dança oriental, o argumento do texto diz como Santa Maria defende um monge embriagado, que vai à igreja, onde sofre ataques do demónio que lhe aparece em forma de touro, de gañan – homem negro e peludo -, e de leão. Vamos ouvi-la: 



Cantiga 47 "Virgen Santa Maria, guarda-nos, se te praz"

Esta é como Santa Maria guardou o monge,
que o demo quis espantar por lo fazer perder.


     Feita esta introdução ao enquadramento das Cantigas na sua época – a Idade Média, um período da história da civilização ocidental, em que as mentalidades eram dominadas por uma profunda crença no divino, mas também pela superstição, vamos tentar mostrar como elas representam mouros e judeus, numa sociedade regulada pela Igreja. 


Mouros e Judeus nas “Cantigas de Santa Maria”


Painel 3 (detalhe) da Cantiga 46


     É sabido que Afonso X dispunha na sua corte de intelectuais e artistas de diferentes orientações religiosas e culturais – cristãos, muçulmanos e judeus. Como seria de esperar numa sociedade medieval, as minorias, neste caso mouros e judeus, eram toleradas, embora num regime de excepção, portanto sem os mesmos direitos dos cristãos. Esta circunstância tem influência na forma como os três grupos são retratados nas Cantigas.

     Um aspecto problemático do corpo de milagres é o forte anti-semitismo de alguns deles. Em certas Cantigas, as representações estereotipadas de judeus com feições grosseiras e narizes aduncos, cometendo toda a espécie de crimes contra cristãos, se bem que sejam um reflexo das leis civis e canónicas vigentes na época, não deixam por isso de ser virulentas. 



Cantiga 25 (detalhe)


      O judeu aqui representado segue o modelo do “judeu usurário”, que empresta dinheiro a um bom cristão, que por sua vez tinha gasto toda a sua fortuna em acções de caridade. 




    Nesta iluminura o judeu está representado como o assassino de Cristo. A crença no judeu deicida, que de certa forma legitimou todo o tipo de perseguições movidas contra o Povo Judeu, resultou em inúmeros massacres como o descrito na Cantiga 12. 



Cantiga 12 – Painel 6 - Os judeus são mortos


     A Cantiga 12 conta-nos a seguinte história: em Toledo, na festa da Assunção de Maria, o arcebispo dizia missa. Repentinamente ouve-se a voz de uma mulher que acusa os judeus de terem assassinado Cristo, acrescentando que continuavam a antagonizá-lo. Depois da missa, o arcebispo conta ao povo o que a voz tinha dito. Então, a multidão dirige-se à judiaria e descobre alguns judeus que cuspiam numa imagem de cera de Cristo, tendo já preparada uma cruz onde tencionavam pendurar a dita imagem. Os judeus foram mortos. 



Cantiga 12 "O que a Santa Maria mais despraz"

O que a Santa Maria mais despraz
é de quen ao seu Fillo faz



Cantiga 187 (detalhe)


     Na imagem anterior podemos observar Nasrid, o emir de Granada, abraçando o seu aliado cristão. Com efeito, no processo da Reconquista do século XIII, a dinastia Nasrid aliou-se frequentemente aos cristãos, contra o poder dos almóadas. Talvez por esta razão, o tratamento que nas Cantigas é dispensado aos mouros, apesar de serem representados como antagonistas religiosos, seja bem mais benévolo, comparativamente ao dispensado aos judeus. 



Cantiga 181 – Painel 4


     A Cantiga 181 descreve o milagre em que a Virgem apoia o exército de Marrocos, contra outro exército muçulmano invasor. O rei de Marrocos é aconselhado a pedir aos cristãos da cidade um estandarte com a imagem da Virgem, para acompanhar as suas tropas. A vitória é decisiva - “Pero que seja gente d’outra lei descreuda, os que a Virgen mais aman, a esses ela ajuda.”



Esta é como Aboyuçaf foy desbaratado en Marrocos 
pela sina de Santa Maria





Notas:

As Cantigas de Santa Maria constituem a obra lírica mais importante da Espanha Medieval. Os seus 420 poemas são escritos em galaico-português, com a correspondente notação musical e iluminuras que acompanham o texto.

O Emirato de Granada Reino nazarí de Granada -, nasceu em 1238, fruto de uma aliança entre Fernando III de Castela e Mohamed I ibn Nasir, criando um reino tributário, subordinado à Coroa de Castela. Granada pagou tributo aos reis de Castela durante cerca de 250 anos, até à sua conquista por Fernando e Isabel, em 1492. 


Este artigo foi elaborado e oferecido por Sónia Craveiro


Muito obrigada por tão interessante artigo.


Fontes:


1 comentário: