terça-feira, 23 de setembro de 2014

Um Conto para Rosh Hashaná




O pastorzinho que não sabia ler




    Era uma vez um pastor, um rapazinho judeu, que adorava assobiar ao seu rebanho de ovelhas. O pastorzinho não ia à escola, não sabia ler nem escrever, passando os dias a ouvir os sons da natureza e a admirar a beleza do mundo.



    Um dia, nos princípios do Outono, decidiu juntar-se às pessoas que se dirigiam para a sinagoga, para as orações de Rosh Hashaná. Pôde ouvir um pai que fazia recomendações ao filho, dizendo-lhe para se comportar apropriadamente, porque naquele dia o mundo inteiro ia ser julgado, e cada um de nós seria julgado para o resto do ano. 



    O pastorzinho logo que entrou na sinagoga sentiu como que uma excitação no ar. Havia qualquer coisa na atmosfera que lhe despertou uma profusão de sentimentos: de arrependimento e de temor, de reverência e de amor. Não conhecia as palavras para explicar o que sentia, mas o seu coraçãozinho estava quase a explodir de tanta comoção. 




      Reparou que todos na sinagoga seguravam um livro de orações, o mahzor, e rezavam com muito fervor. Então o pastorzinho foi buscar um livro mahzor; mas não sabia ler, nem ao menos reconhecia a forma da letra alef. Na verdade ele segurou no livro de pernas para o ar, e sem saber o que fazer, os seus pensamentos começaram a vaguear.



     Foi quando D’us penetrou na sua alma, inundando-a com o Seu sopro divino, e o pastorzinho, não conseguindo mais controlar os seus sentimentos, o amor que sentia pelo mundo, fez aquilo que sabia fazer tão bem: ASSOBIAR!!!




De repente, todos olharam para ele. Como podia ser tão ignorante? Como podia atrever-se a desrespeitar aquele lugar santo, naquele dia santo? Alguns quiseram mesmo expulsá-lo da sinagoga. Mas o rabino, com um brilho nos olhos, dirigiu-se-lhe, pegou-lhe na mão e conduziu-o à *bimá




     Terminadas as orações o rabino voltou-se para a congregação, lembrando a todos que uma Corte Celestial estava a julgar-nos, a perscrutar o que de pior havia na nossa alma. Mas quando o assobio do pastorzinho soou, a pureza dos seus sentimentos abriu os portões do Céu e as orações por Israel tinham sido finalmente ouvidas. 



São os votos sinceros da Sónia Craveiro,
 que nos enviou este conto.


Muito obrigada Sónia J



*bimá A bimá é uma plataforma elevada na sinagoga, onde se faz a leitura da Torah, e se fazem algumas prédicas. 






Fontes:
N. Musatova; Zalman Kleinman e Shirley Moscowitz  paintings

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

A Chave em Salónica







A Chave em Salónica
Abarbanel, Farias ou Pinedo
atirados de Espanha por ímpia
perseguição, conservam todavia
a chave de uma casa de Toledo.


Livres agora da esperança e do medo,
olham a chave ao declinar do dia;
no bronze há outroras, distância,
cansado brilho e sofrimento quedo.


Hoje que sua porta é poeira, o instrumento
é cifra da diáspora e do vento,
como essa outra chave do santuário


que alguém lançou ao azul quando o romano
com fogo temerário acometeu,
e que no céu uma mão recebeu.



Jorge Luís Borges



segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Persistência na metamorfose






Só em Maio de 1773 se publicou em Portugal uma lei que extinguiu a segregação entre "cristãos velhos" e "cristãos novos". Mas foi preciso esperar até 1822 para se ver atirada para o arquivo dos horrores da História essa instituição de manipulação política e social do religioso chamada Santo Ofício. O sinistro tribunal (já existente em Espanha desde 1478) fora autorizado por Roma em 1547, mas a perseguição pelo poder real dos judeus iniciara-se décadas antes, com especial vigor a partir do seu baptismo forçado, decretado por lei de D. Manuel I datada de 1497, no seguimento das imposições decorrentes do seu casamento com uma filha dos Reis Católicos.





D. Manuel I.




Com a expulsão dos judeus de Castela, ordenada em 1492, todo o território português se transformara em campo de incontáveis multidões de refugiados, as quais – num primeiro momento – fixaram residência provisória nos terrenos limítrofes de muitas vilas e cidades da raia. Nem todos permaneceram, mas muitos foram aqueles que acabaram por se agarrar às terras de Trás-os-Montes, da Beira e do Alentejo – engrossando a população hebraica que já aí habitava, cuja presença comprovada por achados arqueológicos se pode remontar aos últimos séculos do Império Romano (embora existam indícios linguísticos e documentais que nos poderão levar a épocas anteriores).


As judiarias da raia portuguesa, tal como chegaram ao nosso tempo, são fruto de um palimpsesto arquitectónico e cultural. Com origem medieval – talvez nos tempos em que se iniciara a segregação de judeus e muçulmanos – apresentam uma identidade sedimentar. Se até ao século XIV judeus e cristãos viviam no mesmo espaço – embora os seguidores da Lei de Moisés tivessem as suas comunas, com espaços sociais e de culto próprios – a partir desse momento vêem-se obrigados a envergar vestuário distintivo e a 
viver em ruas separadas, fechadas por portas. As leis nem sempre eram cumpridas ou feitas cumprir, mas existiam. Pequenos comerciantes e/ou artífices, foram os fundadores de uma estrutura habitacional ligeiramente distinta, reconhecível pela existência de edifícios com duas portas: uma estreita (a de morada) e outra larga (a da oficina). Na ombreira do lado direito era colocada a "mezuzah", pequeno rolo com uma oração ritual (de que hoje sobram rasgos na pedra). Existiriam ainda, em todas as comunidades com mais de dez membros, constituídas enquanto comunas, a sinagoga e a escola.


Foi tudo arrasado com a conversão forçada em finais do século XV? Nem por isso. As sinagogas transformaram-se em habitações (como a pequena casa de oração de Castelo de Vide) ou em igrejas cristãs (a de Portalegre passou a "igreja de São Lourencinho"). As "ruas da Judiaria", sendo as mesmas, mudaram de nome (primeiro exemplo dessa lamentável mania de apagar a memória toponímica), passando a ser "ruas novas". Continuaram a demolir-se casas e a construir-se casas novas. O rasgo vertical nas ombreiras transformou-se numa cruz. Nos lintéis passaram a surgir, com abundância estranha, símbolos cristãos – não fizessem o diabo inquisitorial e a inveja das suas (e muitas vezes fizeram…). Esta metamorfose levou, até, à edificação na entrada de Castelo de Vide de uma capela a Vicente Ferrer, o pregador espanhol do século XV que marca presença também numa fonte pouco distante da "Rua Nova" portalegrense.









Antiga judiaria de Castelo de Vide.
Fotos - e-cultura.sapo.pt




São raras as vilas e cidades da raia portuguesa que não preservam a memória arquitectónica e/ou toponímica da sua antiga judiaria. Entre todas, é Castelo de Vide aquela que melhor transpira essa presença ancestral. O bairro que desce da fortaleza até à inigualável Fonte da Vila impressiona pela quantidade de portais góticos e renascentistas, pelas ruas íngremes, com recantos secretos, pelo olhar das suas gentes que – ainda há pouco tempo – continuavam a rezar, com os habitantes de uma aldeia próxima (Carreiras), orações judaicas ligeiramente cristianizadas, persistindo em costumes que não negam a sua origem.



A Civilização muda, mas a Cultura tende a persistir. Provam-no muitas judiarias. Prova-o a Cultura de muitos homens e mulheres da raia portuguesa.




Publicado em tradução na revista La imagen de Extremadura, nº 12.



RUY VENTURA (Portalegre, 1973) é professor na península da Arrábida, a trinta quilómetros de Lisboa. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003), Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem  (Badajoz, 2006); em 2009 editará o original Chave de ignição, com edição simultânea em Portugal (edições Cosmorama) e em Espanha (Littera Libros). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Poemas e/ou livros seus estão traduzidos em castelhano, francês, inglês e alemão. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.
Coordena o blogue Estrada do Alicerce




de Ruy Ventura



alicerces1.blogspot.com




domingo, 7 de setembro de 2014

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Shabat Shalom









Aparar a barba...









Aparar a barba, cortar unhas ou o cabelo à sexta-feira é sinónimo de azar. Este ditado antigo baseia-se no receio que os cristãos-novos tinham em ser denunciados por um qualquer vizinho à Inquisição. Manter a higíene pessoal em preparação para Shabat, (sábado) era algo que poderia denunciar as suas práticas judaizantes, e consequentemente, um acto perigoso a partir dos finais do século XV.