Só em Maio de 1773 se publicou em Portugal uma
lei que extinguiu a segregação entre "cristãos velhos" e
"cristãos novos". Mas foi preciso esperar até 1822 para se ver
atirada para o arquivo dos horrores da História essa instituição de manipulação
política e social do religioso chamada Santo Ofício. O sinistro tribunal (já
existente em Espanha desde 1478) fora autorizado por Roma em 1547, mas a
perseguição pelo poder real dos judeus iniciara-se décadas antes, com especial
vigor a partir do seu baptismo forçado, decretado por lei de D. Manuel I datada
de 1497, no seguimento das imposições decorrentes do seu casamento com uma
filha dos Reis Católicos.
D. Manuel I.
Com a expulsão dos judeus de Castela, ordenada
em 1492, todo o território português se transformara em campo de incontáveis
multidões de refugiados, as quais – num primeiro momento – fixaram residência
provisória nos terrenos limítrofes de muitas vilas e cidades da raia. Nem todos
permaneceram, mas muitos foram aqueles que acabaram por se agarrar às terras de
Trás-os-Montes, da Beira e do Alentejo – engrossando a população hebraica que
já aí habitava, cuja presença comprovada por achados arqueológicos se pode
remontar aos últimos séculos do Império Romano (embora existam indícios
linguísticos e documentais que nos poderão levar a épocas anteriores).
As judiarias da raia
portuguesa, tal como chegaram ao nosso tempo, são fruto de um palimpsesto
arquitectónico e cultural. Com origem medieval – talvez nos tempos em que se
iniciara a segregação de judeus e muçulmanos – apresentam uma identidade
sedimentar. Se até ao século XIV judeus e cristãos viviam no mesmo espaço –
embora os seguidores da Lei de Moisés tivessem as suas comunas, com espaços
sociais e de culto próprios – a partir desse momento vêem-se obrigados a envergar
vestuário distintivo e a
viver em ruas separadas, fechadas por portas. As
leis nem sempre eram cumpridas ou feitas cumprir, mas existiam. Pequenos
comerciantes e/ou artífices, foram os fundadores de uma estrutura habitacional
ligeiramente distinta, reconhecível pela existência de edifícios com duas
portas: uma estreita (a de morada) e outra larga (a da oficina). Na ombreira do
lado direito era colocada a "mezuzah", pequeno rolo com uma oração
ritual (de que hoje sobram rasgos na pedra). Existiriam ainda, em todas as
comunidades com mais de dez membros, constituídas enquanto comunas, a sinagoga
e a escola.
Foi tudo arrasado com a conversão forçada em
finais do século XV? Nem por isso. As sinagogas transformaram-se em habitações
(como a pequena casa de oração de Castelo de Vide) ou em igrejas cristãs (a de
Portalegre passou a "igreja de São Lourencinho"). As "ruas da
Judiaria", sendo as mesmas, mudaram de nome (primeiro exemplo dessa
lamentável mania de apagar a memória toponímica), passando a ser "ruas novas".
Continuaram a demolir-se casas e a construir-se casas novas. O rasgo vertical
nas ombreiras transformou-se numa cruz. Nos lintéis passaram a surgir, com
abundância estranha, símbolos cristãos – não fizessem o diabo inquisitorial e a
inveja das suas (e muitas vezes fizeram…). Esta metamorfose levou, até, à
edificação na entrada de Castelo de Vide de uma capela a Vicente Ferrer, o
pregador espanhol do século XV que marca presença também numa fonte pouco
distante da "Rua Nova" portalegrense.
Antiga judiaria de Castelo de Vide.
Fotos - e-cultura.sapo.pt
São raras as vilas e cidades da raia portuguesa
que não preservam a memória arquitectónica e/ou toponímica da sua antiga
judiaria. Entre todas, é Castelo de Vide aquela que melhor transpira essa
presença ancestral. O bairro que desce da fortaleza até à inigualável Fonte da
Vila impressiona pela quantidade de portais góticos e renascentistas, pelas
ruas íngremes, com recantos secretos, pelo olhar das suas gentes que – ainda há
pouco tempo – continuavam a rezar, com os habitantes de uma aldeia próxima
(Carreiras), orações judaicas ligeiramente cristianizadas, persistindo em
costumes que não negam a sua origem.
A Civilização muda, mas a Cultura tende a
persistir. Provam-no muitas judiarias. Prova-o a Cultura de muitos homens e
mulheres da raia portuguesa.
Publicado em tradução na revista La imagen de
Extremadura, nº 12.
RUY VENTURA (Portalegre, 1973) é professor na
península da Arrábida, a trinta quilómetros de Lisboa. Publicou, em poesia,
Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da
Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003),
Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003), Um pouco mais sobre a cidade
(Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006); em 2009 editará o original Chave
de ignição, com edição simultânea em Portugal (edições Cosmorama) e em Espanha
(Littera Libros). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São
Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede
(Almada, 2005), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista
Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma
aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século
XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado
(Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A
Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de
várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras
e americanas. Poemas e/ou livros seus estão traduzidos em castelhano, francês,
inglês e alemão. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea,
Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.
Coordena o blogue Estrada do Alicerce
de Ruy Ventura
alicerces1.blogspot.com
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