Por Salvador Massano Cardoso
O tempo permite recordar certos momentos que podem ser facilmente transformados em interessantes histórias. Acontece-me frequentemente sofrer de regurgitação saborosa desses apontamentos, que, desejosos de ver a luz do dia, ajudam a construir novas ideias.
Ao ler a publicação de que os descendentes de judeus expulsos de Portugal nos séculos XV e XVI podem obter a nacionalidade portuguesa, uma forma de tranquilizar a má consciência colectiva, recordei-me de um pequeno episódio ocorrido há mais de vinte anos.
Fui apresentar um trabalho a Jerusalém. Foi uma verdadeira epopeia chegar até lá. Fiquei com a nítida sensação de que nem um piolho ou percevejo seria capaz de furar as barreiras que tive de transpor. O congresso teve lugar fora da cidade, numa zona ocupada, um kibutz transformado em hotel. Nada mal, apesar de tudo. Era o único português. Fui confrontado com várias culturas, hábitos e costumes diferentes dos nossos. Tropeçava a qualquer momento com interessantes pretextos para fabricar histórias; imensos. Não recordo de uma semana tão profícua em termos de temas para mais tarde escrever. Não vou passar a pente fino esses acontecimentos, mas sim descrever um que me impressionou.
No dia da discussão do meu poster, fui o primeiro a chegar à sala. Mania de gaiteiro! Aparentemente estava vazia, mas ao fundo vislumbrei um militar fardado com uma pistola à cintura. Baixo, atarracado mesmo, com notória falta de cabelo, apesar de ser ainda novo, estava de plantão junto do meu trabalho. Na altura, as convulsões naquele país estavam bem acesas, como é costume. Fiquei meio apreensivo, mas continuei a caminhar. Ao chegar, o senhor perguntou-me se eu era o autor daquele trabalho. A minha inquietação cresceu porque tratava-se de um trabalho sobre epidemiologia das doenças cardiovasculares que, aparentemente, não tinha nada de subversivo e nem interesse para um militar armado. Disse que sim, que é que havia de dizer? Foi então que o militar, com barriga proeminente, baixo e com a calvície a nascer, me cumprimentou e disse mais ou menos o seguinte:- É o primeiro português que conheço. Sou médico. Os meus antepassados foram expulsos de Portugal, mais concretamente de Lisboa. Fiquei de boca aberta! O medo dissipou-se e a curiosidade aumentou em proporção inversa. A conversa continuou com o colega hebreu a fazer imensas perguntas sobre Portugal, país que gostaria imenso de conhecer. Contou-me que os seus pais falavam ladino em casa. Ele, assim como a irmã, já não sabiam falar, mas ainda rezavam nessa língua com os pais. A sua curiosidade em ver um "compatriota" (!) foi tal a ponto de estar ali, sozinho. Com mais atenção, e admiração, vi que tinha um vulgar ar de português. Ele queria conversar. A certo momento contou-me que em casa a família tinha uma velha chave. Os pais guardavam-na com muito carinho; vinha sendo transmitida de geração em geração. Era a chave da casa onde viveram os seus antepassados quando foram expulsos de Portugal. Fiquei sensibilizado com aquela descrição. A chave representou, e, talvez, quem sabe, continua a ser o símbolo da esperança de um dia poderem regressar à sua casa. Uma esperança que se acasala perfeitamente com a atribuição da nacionalidade portuguesa aos descendentes dos expulsos das suas terras.
Não sei se os pais ainda são vivos. Não sei se o médico israelita vai ter conhecimento desta decisão do governo português, mas se tiver quase que tenho a certeza de que a irá solicitar. Não é em vão que se guarda durante centenas de anos a chave da casa de onde foram expulsos.
Interessante poder sentir a força da "nacionalidade" séculos depois da ignomínia da expulsão.
Sefarad. A eterna Sefarad.
Via: quartarepublica.blogspot.pt
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