PEREGRINAÇÃO
Frontispício da Peregrinação
de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, 1614
Falar de Fernão Mendes Pinto é falar da Peregrinação, de tal forma homem e obra
estão ligados. Pouco se sabe da sua vida, para além de que nasceu e morreu em
Portugal, passou vinte e um anos na Ásia e escreveu um livro – Peregrinação -, publicado em 1614 (trinta
e um anos após a morte do autor).
Descobrimentos Marítimos Portugueses - Planisfério Cantino, 1502
A vida de Fernão Mendes Pinto abrange quase todo o
século XVI, uma época que foi palco tanto da gloriosa ascensão, como da
decadência da nação portuguesa. Por altura do seu nascimento (1509?-1511?), o Império
Português estava espalhado ao longo de uma linha que ia da costa do Brasil às
da África Ocidental e Oriental, à Pérsia, à costa do Malabar na Índia, ao
Ceilão e aos arquipélagos da Malaia e das Molucas. Quando Fernão Mendes Pinto
morreu, em 1583, Portugal tinha perdido a sua independência, absorvido pelo império
de Filipe II, rei de Espanha (Filipe I de Portugal).
Pensamos
ser apropriado introduzir aqui duas peças musicais que ilustram, a primeira, o
apogeu do Império Português no reinado de D. João III, e a segunda, a derrota do
exército português em Alcácer-Quibir, comandado por D. Sebastião, que
conduziria à perda da nossa independência: “Pardeos bem andou Castella” e
“Puestos estan frente a frente”.
Carlos V e Isabel de Portugal, retratados por Tiziano
“Pardeos bem andou Castella” é referida como uma
“Portuguesa folia” na peça de Gil Vicente “Templo d’Apolo”, estreada na partida
de D. Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I, para Castela, quando casou com
o Imperador Carlos V, em 1526.
Pardeos bem andou Castela/pois tem rainha tam bela
(…)
Pardeos bem andou Castela/com toda sua Espanha
pois tem rainha tam
bela/emperatriz d’Alemanha
Segréis de Lisboa – Música para o teatro de Gil Vicente – Pardeos bem andou Castella
D. Sebastião, retratado por Cristóvão de Morais, c. 1572-74
“Puestos
estan frente a frente” (romance) faz parte da obra “Miscelânea”, de Miguel Leitão
d'Andrade, publicada em 1629; narra a Batalha de Alcácer-Quibir, ocorrida em
1578, na qual o rei português D. Sebastião perdeu a vida.
Puestos estan frente a frente/Los dos valerosos
campos
Uno es del Rey Maluco/otro de Sebastiano el Lusitano
(…)
Busca la muerte en dar muertes/Sebastiano el
Lusitano
Diziendo ahora es la hora/Que “Un ben morir, tutta
la vitta honora”
Gérard Lesne - O Lusitano: Puestos
estan frente a frente
Fernão
Mendes Pinto informa-nos logo no início da longa narrativa da sua peregrinação
de que «(…) até à idade dos dez ou doze anos vivi na miséria e na estreiteza da
pobre casa de meu pai na vila de Montemor-o-Velho (…)». Deduzimos que nasceu
algures entre 1509 e 1511, conforme palavras do próprio ao afirmar que tinha
dez ou doze anos quando morreu o rei D. Manuel I, no dia de Santa Luzia, a 13
de Dezembro de 1521.
A
família de Fernão Mendes Pinto, embora pobre, será remotamente aparentada com
os poderosos Mendes (Francisco e
Diogo Mendes) de Lisboa e Antuérpia, cristãos-novos a quem a coroa portuguesa
concedera o monopólio do comércio das especiarias, nos começos do século XVI. Talvez
isto explique o tio que o levou para Lisboa e o colocou ao serviço de uma
senhora da nobreza. Em 1523, o jovem Fernão Mendes Pinto vive em Setúbal ao
serviço da casa do fidalgo Francisco de Faria e a partir de 1527 é moço de
câmara na Casa de D. Jorge de Lencastre, Mestre da Ordem de Santiago e filho
natural de D. João II.
É em 1537 que embarca para a Índia, tentando a sua
sorte em terras do Ultramar. A partir daí, pelo espaço de vinte e um anos,
Fernão Mendes Pinto vive aventuras que virá a descrever ao longo dos 226
capítulos da sua Peregrinação. Relata
massacres terríveis, tendo muito provavelmente participado em alguns deles;
diz-nos que foi escravo, soldado, negociante, embaixador, missionário,
corsário… «fui treze vezes cativo e dezasseis vendido, por causa dos
desaventurados sucessos que atrás no decurso desta minha tão longa peregrinação
largamente deixo contados» (Cap. 226).
Portugueses no Japão, Biombo Namban, séc. XVI/XVII
Nas suas andanças pela Ásia, viveu em Malaca, em
Pegu (Birmânia) e no Sião. Depois, andou pelos mares da China em viagens de
negócios e sabe-se que fez quatro ao Japão. Nesta fase da sua vida, que está
relativamente bem documentada, há informação de que juntou uma fortuna considerável;
é como negociante abastado que conhece S. Francisco Xavier na sua terceira
viagem ao Japão, em 1551, tendo emprestado dinheiro àquele missionário para a
construção da primeira igreja cristã em terras nipónicas.
Em 1554
decide regressar à pátria, mas enquanto permaneceu em Goa foi tomado de um
fervor místico que o levou a doar grande parte dos seus bens à Companhia de
Jesus, que o acolheu como noviço. Foi nestas circunstâncias que integrou uma
missão evangelizadora ao Japão (totalmente custeada por si), que no entanto
resultou em fracasso.
Rua Direita em Goa, 1596, Jan Huygen van Linshoten
Entre
esta última viagem ao Japão e o regresso a Goa, em 1557, Fernão Mendes Pinto
decide afastar-se da Companhia de Jesus, ao que tudo indica a seu próprio
pedido e amigavelmente. Regressa a Portugal em 1558, era D Catarina rainha
regente, e durante quatro anos e meio andou empatado na corte na expectativa de
uma compensação pelos serviços prestados à Coroa. Vendo as suas pretensões
frustradas, retira-se para uma pequena propriedade que possuía no Pragal, perto
de Almada; casou, constituiu família, e entre 1569 e 1578 escreveu a sua Peregrinação. Morreu em 1583, apenas três
meses depois de ter recebido um modesto estipêndio da Coroa, em reconhecimento
dos serviços prestados a Deus e ao Rei.
Parece ser intencional, e não por acidente, que
Fernão Mendes Pinto omite aspectos da sua vida na Peregrinação; sob a aparência de um romance de aventuras onde é
difícil separar o real do imaginário, a obra revela-nos uma crítica à sociedade
do seu tempo, uma denúncia às atrocidades cometidas, hipocrisias e falsa
religiosidade, que Fernão Mendes Pinto testemunha, embora de forma indirecta,
por razões tão evidentes como a Censura e a Inquisição.
A
ideologia da Cruzada foi a força unificadora mais importante da história de
Portugal na época dos descobrimentos. Mas essa ideologia era marcada por uma
intolerância a que o autor de Peregrinação
foi profundamente sensível, como podemos constatar nos exemplos que se seguem:
Palavras de um menino raptado a seus pais, e que os
portugueses captores tentavam doutrinar:
— Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi louvar a
Deus despois de fartos, com as mãos alevantadas e com os beiços untados, como
homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o
que têm roubado; pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto
a bulir com os beiços, quanto nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e
matar, que são dous pecados tão graves quanto despois de mortos conhecereis no
rigoroso castigo de Sua divina justiça. (Cap. 55)
Palavras
dos tártaros acerca do procedimento dos portugueses:
— Conquistar esta gente terra tão alongada da sua
pátria dá claramente a entender que deve de haver entre eles muita cobiça e
pouca justiça.
A que o
velho, que se chamava Raja Bendão, respondeu:
—
Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por
cima das águas todas por adquirirem o que Deus lhe não deu, ou a pobreza neles
é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira
que lhes causa a sua cobiça é tamanha por ela negam a Deus e a seus pais. (Cap.
122)
Rua Direita em Goa, (detalhe) 1596, Jan Huygen van Linshoten
Durante os vinte e um anos que viveu na Ásia, Fernão
Mendes Pinto teve uma vida activa, recheada de aventuras e, porventura, alheada
das restrições políticas e religiosas que estavam a ser gradualmente impostas
na sua pátria.
Por
outro lado, o contacto estreito com as religiões asiáticas, tradicionalmente
tolerantes, ter-lhe-á permitido amadurecer ideias e atitudes. Na sociedade
multirracial da Índia portuguesa, é possível que tenha estabelecido contactos
com o Judaísmo, através da antiga comunidade judaica que ali se radicara muito
antes da chegada dos portugueses.
De uma
forma ou de outra, Fernão Mendes Pinto chegou a uma filosofia que se fundamenta
na moral dos Dez Mandamentos; crê no princípio do livre arbítrio, na assunção
da responsabilidade pelos próprios actos; rejeita o mito do deus da tribo que
aceita quebrar os seus próprios mandamentos e a prática de actos imorais contra
membros de uma qualquer sociedade, independentemente da sua raça, credo ou cor.
Podemos assim
concluir que a Peregrinação é, antes
de mais, um apelo à tolerância racial e religiosa.
Arte indo-portuguesa, Goa, Nª Senhora da Palma, (detalhe) séc. XVII
Terminamos
este artigo com um exemplo musical que é fruto do cruzamento de duas culturas:
a portuguesa e a indiana. Trata-se da canção mariana Senhora del mundo (que Gil Vicente incluiu no seu Auto da Feira, representado “ás matinas do Natal, na era do Senhor de
1527”), numa interpretação da saudosa Montserrat Figueras, acompanhada por saltério
e instrumentos musicais indianos.
“…a mágoa que eu
tenho de ver o muito que por nossos pecados nesta parte perdemos e o muito que
pudéramos ganhar…”
Fernão Mendes
Pinto
Notas:
1
- O Planisfério Cantino é uma carta náutica que representa os descobrimentos
marítimos portugueses. Deve o seu nome a Alberto Cantini, que a obteve
clandestinamente em Lisboa, em 1502, para o seu empregador, Ercole I d’Este,
duque de Ferrara.
2 - Carlos V e Isabel de Portugal são pais de Filipe II
de Espanha (I de Portugal) e avós de D. Sebastião.
Este artigo foi elaborado e enviado
por
Sónia Craveiro
Muito obrigada pela partilha J
Fontes:
CATZ, Rebecca, A
sátira social de Fernão Mendes Pinto – análise crítica da Peregrinação,
Prelo, Lisboa, 1978;
PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação, Publicações
Europa-América, 1983;
NERY, Rui Vieira, Música
para o teatro de Gil Vicente, Portugaler.
Sem comentários:
Enviar um comentário