sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Itinerário da Terra Santa!



Uma Obra de Frei Pantaleão de Aveiro


Frontispício da primeira edição do Itinerário da Terra Sancta, 1593


   Itinerario da Terra Sancta, e suas particularidades conheceu a sua primeira edição em 1593. Do seu autor, Frei Pantaleão de Aveiro, sabe-se que estava no convento franciscano de Xabregas aquando da publicação do seu livro, e que, conforme se lê no frontispício da 2ª edição de 1596, era «frade menor da Ordem de São Francisco, da Observância da Província dos Algarves». Dele não se sabe o nome secular, nem quem eram seus pais, quando nasceu ou morreu, nem onde. Apenas se lhe conhece o nome religioso, porventura um indicador de que Frei Pantaleão fosse natural de Aveiro.

    Em Itinerário da Terra Santa Pantaleão de Aveiro descreve as suas viagens pela Europa mediterrânica, por terras do Império Otomano, até à Palestina, que como bem sabemos também se encontrava sob domínio otomano. A narrativa, na primeira pessoa, é minuciosa e de grande sensibilidade.



Jerusalém vista do Monte das Oliveiras, David Roberts (1796-1864)


«É cousa maravilhosa e muito de notar que, se daquele outeiro olhais Jerusalém, sentis em vossa alma uma compassiva tristeza e um não sei quê de melancolia que vos aflige o coração…»



Procissão de um auto-de-fé saindo do Palácio dos Estaus no Rossio de Lisboa


    Num tempo de intolerância e de fanatismo religioso marcado pela Inquisição, pela desunião dos cristãos nas disputas violentíssimas da Reforma e da Contra-Reforma, da expulsão dos judeus dos reinos de Espanha e de Portugal, pode dizer-se que ele era um homem tolerante: «Advirto aqui aos que lerem este meu Itinerário que muitas vezes de necessidade hei-de falar de judeus, que destas partes ocidentais achei nas orientais, e afirmo como cristão não ser minha intenção caluniar pessoa alguma nem a gente de nação…». 

    Do muito que nos conta Frei Pantaleão de Aveiro no seu Itinerário, escolhemos alguns episódios que ilustram costumes diversos, uns picarescos, outros de uma grande crueldade. Por exemplo:


“Dar crianças ao Turco”



Janízaro, desenho de Cesare Vecellio (c. 1521-1601)


    Relata-nos o bom frade franciscano que, de todas as províncias do Império Otomano e em especial as do Epiro, da Macedónia e da Albânia, as famílias cristãs eram obrigadas a oferecer crianças do sexo masculino de tributo ao grão-turco. Os meninos eram então educados na Lei Islâmica e na língua turca e instruídos na arte militar, com o fim de criar um corpo de guerreiros de eleição. Fidelíssimos ao Sultão, faziam a guerra e eram também usados no governo da sua corte e de todos os seus reinos e províncias. Eram os janízaros. Todavia, mesmo os que ascendiam a cargos de alta dignidade continuavam escravos do grão-turco, correndo o risco de serem destituídos a qualquer momento ou até condenados à morte. 

     E a propósito de janízaros, propomos agora a audição de uma marcha militar da Música Tradicional Otomana - “Marcha dos Guerreiros”





O Bispo Abegaro Orator


S. Gregório pregando ao rei Tiridates, 1678, Arménia


     Foi em Nicósia que Frei Pantaleão conheceu o bispo Abegaro Orator, patriarca dos Arménios, que se dirigia ao Concílio de Trento em representação das Igrejas Cristãs Orientais.

…..Abegaro viajava em companhia de dois filhos. Não sendo novidade para Frei Pantaleão o caso dos clérigos das nações cristãs do Oriente – abissínios, gregos, gregorianos, arménios, coptas ou sírios - serem casados, o que o espantou deveras foi o facto de ter visto o pai a dizer a missa, um filho a ler o Evangelho e o outro a Epístola.


 Em Damasco


Anónimo veneziano, A Recepção dos Embaixadores em Damasco, 1551


    Sobre Damasco, Frei Pantaleão diz tratar-se de uma cidade nobre e populosa, as pessoas bem-educadas e gentis para com os estrangeiros. Para os forasteiros, fossem cristãos, mouros ou gentios, havia hospedarias onde eram recebidos gratuitamente durante três dias, com comida em abundância. O grão-turco também subsidiava hospitais, onde eram tratados todos os doentes necessitados, e com a renda que sobejava se amparavam os indigentes. Na verdade, o grão-turco sustentava hospitais por todas as terras do seu império, para homens e mulheres, mas também para gatos. 


O gateiro


Gateiro albanês de Istambul


     Em muitas cidades do império havia hospitais para gatos. Cuidava deles um gateiro, que pedia esmola à porta do açougue para alimentar os seus bichanos.


 «Justiça que manda fazer o grão-senhor!»



Sergei Alexkseevich Kirillov, A Execução de Razin, 1986


     Mas se é verdade que o grão-turco praticava a caridade, não é menos verdade que era implacável nos castigos, em nada ficando atrás dos seus congéneres da cristandade ocidental com os seus autos-de-fé. Ainda em Damasco, Frei Pantaleão descreve dois episódios de arrepiar. Conta ele, que de repente a calma é interrompida por um tropel de cavaleiros da justiça que irrompem pela praça, dispersando a multidão. Escoltam vinte e cinco prisioneiros acusados de assaltar viajantes. Ali mesmo são degolados sem hesitações. Prossegue a narrativa, contando de um outro cavaleiro que entra na praça, puxando um infeliz de punhos atados por uma corda que se ia prender à sela do cavalo. Logo surgem algozes que flagelam o desgraçado até ele ficar em carne viva. De seguida crucificam-no, cravando-lhe grossos pregos nas mãos e nos pés, abrem-lhe as espáduas com golpes de enxada, e nas cavidades enfiam-lhe novelos de alcatrão misturado com enxofre. Pegam-lhe fogo, colocam-no em cima de um camelo, com um engenho já preparado, e assim o levam pelas ruas da cidade, flagelado, crucificado e ardendo.



Dançarina com véu azul, Fabio Fabbi (1861-1906)


     Porque a música é como um bálsamo para a alma, capaz de nos dar uma sensação de alegria, parece-nos oportuno, depois das cenas dramáticas atrás relatadas, ouvir *“A Dança do Soma” – Música Tradicional Árabe -, por Usama Abu, em duduk (instrumento de sopro) e Erez Shmuel Monk, na percussão.





Em Safed


Reuven Rubin, Safed na Galileia, 1927


     A nossa última paragem nestas andanças pelo Itinerário de Frei Pantaleão vai ser em Safed, na Galileia, uma das quatro cidades sagradas de Israel.

 Após a expulsão dos judeus dos reinos de Espanha e de Portugal, em finais do século XV, Safed recebeu um grande número de refugiados, entre eles, muitos rabinos e intelectuais. A cidade tornou-se assim um centro de estudos místicos, onde viviam e ensinavam grandes sábios sefarditas, profundos conhecedores do Talmude e da Kabbalah.



Vista de Safed, Yitzhak Frenkel (1899-1981)


     Vejamos agora o que nos conta Frei Pantaleão sobre Safed: «(…) Em amanhecendo vieram dois Judeus Portugueses visitar a Turca por parte dos Judeus, que moravam em Safed, uma povoação grande, que estava dali a pouco mais de légua, a qual em o Livro de Tobias se chama Sapheth: (…) Disseram-nos, que em Safed moravam mais de quatrocentos judeus, a maior parte deles nascidos em Portugal, rogando-me muito que quisesse lá dar uma chegada, porque era muito perto, e não me havia de pesar. Dei-lhe os agradecimentos da sua boa vontade, prometendo-lhes de ir, se o tempo me desse lugar.



Yosl Bergner, Judeus na Sinagoga Abuhav, 1951


(…) Chegamos a Safed, aonde os Judeus nos fizeram uma grande festa, e me levaram à sua Sinagoga, que tinham mui bem concertada, e depois nos recreamos comprando a bom preço o vinho, que me pareceu necessário, nos partimos a Nazareth, que está dali a menos de uma légua. (…) Muito ante manhã nos partimos de Safed, e nos tornámos aos nossos, que à ponte de Jacob nos estavam esperando (…)»

   Despedimo-nos com “Lecha Dodi”, uma oração escrita por Shlomo HaLevi Alkabetz, um cabalista de Safed, de meados do século XVI. “Lecha Dodi” é a oração mais famosa, mais bela, que recitamos com júbilo e fervor, quando recebemos o Shabbat. 




Notas
     Neste breve artigo sobre o Itinerário, foram apresentados apenas alguns excertos da obra. Embora breves, espera-se que sejam expressivos da personalidade tolerante e corajosa de Frei Pantaleão de Aveiro, um homem capaz de interagir com a diferença, sem ver nela uma adversidade.

     Da obra completa, sabemos por Fernando Campos (autor do romance histórico sobre Frei Pantaleão de Aveiro, “A Casa do Pó”), que a investigou miudamente, ser muito rica em pormenores, envoltos num emaranhado de citações bíblicas, alusões detalhadas a cerimónias litúrgicas, etc., como convinha a fim de enfrentar a Mesa Censória.



Este artigo foi elaborado e enviado por
Sónia Craveiro 

Muito obrigada pela excelente participação J


*Dança do ventre

Bibliografia:

http://purl.pt/23024 (2ª edição de Itinerário da Terra Santa, BNP);
CAMPOS, Fernando, “A Casa do Pó”, DIFEL, 1986;


Música:

Traditional Ottoman - Warrior's March
La Capella Real de Catalunya - Grupe Sufi Al-Darwish - Hespèrion XXI - Jordi Savall, dir.
Traditional Arabic - The Dance of the Soma
Usama Abu, duduk, and Erez Shmuel Monk, percussions.
Lekha Dodi

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