Uma
Obra de Frei Pantaleão de Aveiro
Frontispício da primeira
edição do Itinerário da Terra Sancta,
1593
Itinerario
da Terra Sancta, e suas particularidades conheceu a sua primeira edição
em 1593. Do seu autor, Frei Pantaleão de Aveiro, sabe-se que estava no convento
franciscano de Xabregas aquando da publicação do seu livro, e que, conforme se
lê no frontispício da 2ª edição de 1596, era «frade menor da Ordem de São
Francisco, da Observância da Província dos Algarves». Dele não se sabe o nome
secular, nem quem eram seus pais, quando nasceu ou morreu, nem onde. Apenas se
lhe conhece o nome religioso, porventura um indicador de que Frei Pantaleão
fosse natural de Aveiro.
Em Itinerário da Terra Santa Pantaleão de Aveiro descreve as suas
viagens pela Europa mediterrânica, por terras do Império Otomano, até à
Palestina, que como bem sabemos também se encontrava sob domínio otomano. A
narrativa, na primeira pessoa, é minuciosa e de grande sensibilidade.
Jerusalém
vista do Monte das Oliveiras, David Roberts (1796-1864)
«É
cousa maravilhosa e muito de notar que, se daquele outeiro olhais Jerusalém,
sentis em vossa alma uma compassiva tristeza e um não sei quê de melancolia que
vos aflige o coração…»
Procissão de um auto-de-fé
saindo do Palácio dos Estaus no Rossio de Lisboa
Num tempo de intolerância e de
fanatismo religioso marcado pela Inquisição, pela desunião dos cristãos nas
disputas violentíssimas da Reforma e da Contra-Reforma, da expulsão dos judeus
dos reinos de Espanha e de Portugal, pode dizer-se que ele era um homem
tolerante: «Advirto
aqui aos que lerem este meu Itinerário
que muitas vezes de necessidade hei-de falar de judeus, que destas partes
ocidentais achei nas orientais, e afirmo como cristão não ser minha intenção
caluniar pessoa alguma nem a gente de nação…».
Do muito que nos conta Frei
Pantaleão de Aveiro no seu Itinerário,
escolhemos alguns episódios que ilustram costumes diversos, uns picarescos,
outros de uma grande crueldade. Por exemplo:
“Dar
crianças ao Turco”
Janízaro,
desenho de Cesare Vecellio (c. 1521-1601)
Relata-nos o bom frade
franciscano que, de todas as províncias do Império Otomano e em especial as do
Epiro, da Macedónia e da Albânia, as famílias cristãs eram obrigadas a oferecer
crianças do sexo masculino de tributo ao grão-turco. Os meninos eram então educados
na Lei Islâmica e na língua turca e instruídos na arte militar, com o fim de
criar um corpo de guerreiros de eleição. Fidelíssimos ao Sultão, faziam a
guerra e eram também usados no governo da sua corte e de todos os seus reinos e
províncias. Eram os janízaros. Todavia, mesmo os que ascendiam a cargos de alta
dignidade continuavam escravos do grão-turco, correndo o risco de serem
destituídos a qualquer momento ou até condenados à morte.
E a propósito de janízaros, propomos agora
a audição de uma marcha militar da Música Tradicional Otomana - “Marcha dos
Guerreiros”
O
Bispo Abegaro Orator
S.
Gregório pregando ao rei Tiridates, 1678, Arménia
Foi em Nicósia que Frei Pantaleão conheceu
o bispo Abegaro Orator, patriarca dos Arménios, que se dirigia ao Concílio de
Trento em representação das Igrejas Cristãs Orientais.
…..Abegaro viajava em companhia
de dois filhos. Não sendo novidade para Frei Pantaleão o caso dos clérigos das
nações cristãs do Oriente – abissínios, gregos, gregorianos, arménios, coptas
ou sírios - serem casados, o que o espantou deveras foi o facto de ter visto o
pai a dizer a missa, um filho a ler o Evangelho e o outro a Epístola.
Anónimo veneziano, A Recepção dos Embaixadores em Damasco,
1551
Sobre Damasco, Frei Pantaleão
diz tratar-se de uma cidade nobre e populosa, as pessoas bem-educadas e gentis
para com os estrangeiros. Para os forasteiros, fossem cristãos, mouros ou
gentios, havia hospedarias onde eram recebidos gratuitamente durante três dias,
com comida em abundância. O grão-turco também subsidiava hospitais, onde eram
tratados todos os doentes necessitados, e com a renda que sobejava se amparavam
os indigentes. Na verdade, o grão-turco sustentava hospitais por todas as
terras do seu império, para homens e mulheres, mas também para gatos.
O
gateiro
Gateiro albanês de Istambul
Em
muitas cidades do império havia hospitais para gatos. Cuidava deles um gateiro,
que pedia esmola à porta do açougue para alimentar os seus bichanos.
Sergei Alexkseevich
Kirillov, A Execução de Razin, 1986
Mas se é verdade que o grão-turco
praticava a caridade, não é menos verdade que era implacável nos castigos, em
nada ficando atrás dos seus congéneres da cristandade ocidental com os seus autos-de-fé.
Ainda em Damasco, Frei Pantaleão descreve dois episódios de arrepiar. Conta
ele, que de repente a calma é interrompida por um tropel de cavaleiros da
justiça que irrompem pela praça, dispersando a multidão. Escoltam vinte e cinco
prisioneiros acusados de assaltar viajantes. Ali mesmo são degolados sem
hesitações. Prossegue a narrativa, contando de um outro cavaleiro que entra na
praça, puxando um infeliz de punhos atados por uma corda que se ia prender à
sela do cavalo. Logo surgem algozes que flagelam o desgraçado até ele ficar em
carne viva. De seguida crucificam-no, cravando-lhe grossos pregos nas mãos e
nos pés, abrem-lhe as espáduas com golpes de enxada, e nas cavidades enfiam-lhe
novelos de alcatrão misturado com enxofre. Pegam-lhe fogo, colocam-no em cima
de um camelo, com um engenho já preparado, e assim o levam pelas ruas da
cidade, flagelado, crucificado e ardendo.
Dançarina
com véu azul, Fabio Fabbi (1861-1906)
Porque a música é como um bálsamo para a
alma, capaz de nos dar uma sensação de alegria, parece-nos oportuno, depois das
cenas dramáticas atrás relatadas, ouvir *“A Dança do Soma” – Música Tradicional
Árabe -, por Usama Abu, em duduk
(instrumento de sopro) e Erez Shmuel Monk, na percussão.
Em
Safed
Reuven Rubin, Safed na Galileia, 1927
A nossa última paragem nestas andanças
pelo Itinerário de Frei Pantaleão vai
ser em Safed, na Galileia, uma das quatro cidades sagradas de Israel.
Vista
de Safed, Yitzhak Frenkel (1899-1981)
Vejamos agora o que nos conta Frei
Pantaleão sobre Safed: «(…) Em amanhecendo vieram dois Judeus Portugueses
visitar a Turca por parte dos Judeus, que moravam em Safed, uma povoação
grande, que estava dali a pouco mais de légua, a qual em o Livro de Tobias se
chama Sapheth: (…) Disseram-nos, que em Safed moravam mais de quatrocentos
judeus, a maior parte deles nascidos em Portugal, rogando-me muito que quisesse
lá dar uma chegada, porque era muito perto, e não me havia de pesar. Dei-lhe os
agradecimentos da sua boa vontade, prometendo-lhes de ir, se o tempo me desse
lugar.
Yosl Bergner, Judeus na Sinagoga Abuhav, 1951
(…) Chegamos a Safed, aonde os Judeus nos fizeram uma grande festa, e
me levaram à sua Sinagoga, que tinham mui bem concertada, e depois nos
recreamos comprando a bom preço o vinho, que me pareceu necessário, nos
partimos a Nazareth, que está dali a menos de uma légua. (…) Muito ante manhã
nos partimos de Safed, e nos tornámos aos nossos, que à ponte de Jacob nos
estavam esperando (…)»
Despedimo-nos com “Lecha Dodi”, uma oração escrita por Shlomo HaLevi
Alkabetz, um cabalista de Safed, de meados do século XVI. “Lecha Dodi” é a
oração mais famosa, mais bela, que recitamos com júbilo e fervor, quando
recebemos o Shabbat.
Notas
Neste breve artigo sobre o Itinerário, foram apresentados apenas
alguns excertos da obra. Embora breves, espera-se que sejam expressivos da
personalidade tolerante e corajosa de Frei Pantaleão de Aveiro, um homem capaz
de interagir com a diferença, sem ver nela uma adversidade.
Da obra completa, sabemos por Fernando
Campos (autor do romance histórico sobre Frei Pantaleão de Aveiro, “A Casa do
Pó”), que a investigou miudamente, ser muito rica em pormenores, envoltos num
emaranhado de citações bíblicas, alusões detalhadas a cerimónias litúrgicas,
etc., como convinha a fim de enfrentar a Mesa Censória.
Este
artigo foi elaborado e enviado por
Sónia
Craveiro
Muito
obrigada pela excelente participação J
*Dança
do ventre
Bibliografia:
http://purl.pt/23024 (2ª edição de Itinerário da Terra Santa, BNP);
CAMPOS,
Fernando, “A Casa do Pó”, DIFEL, 1986;
Música:
Traditional Ottoman - Warrior's March
La Capella Real de Catalunya - Grupe Sufi Al-Darwish - Hespèrion
XXI - Jordi Savall, dir.
Traditional Arabic - The Dance of the Soma
Usama Abu, duduk, and Erez Shmuel Monk,
percussions.
Lekha Dodi
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